Iniciação ao futsal: as crianças jogam para aprender ou aprendem para jogar?







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O futsal, esporte que surgiu da fusão entre o futebol de salão e o futebol cinco, isso no final da década de 80 do século XX (SANTANA, 2002a), desenvolveu-se substancialmente nos últimos dez, doze anos. Muito disso, deve-se às significativas alterações ocorridas nas suas regras. Estas teriam feito do futsal, em comparado ao futebol de salão, um esporte mais dinâmico, competitivo e atraente.

Em particular, há indícios de que as crianças brasileiras constituem grande parte dos que praticam futsal. Isso pode ser entendido, em parte, se considerarmos o processo de urbanização de boa parte das cidades brasileiras (FREIRE, 2003), que fez com que possíveis locais onde as crianças brincavam e jogavam as suas primeiras "peladas" dessem lugar a complexos residenciais e comerciais. Logo, crianças (pelo menos aquelas que vivem em grandes cidades) encontram nas quadras de futsal de escolas, clubes, condomínios e associações possíveis espaços para, orientadas por professores, "jogar bola".

Nesse contexto, de popularidade do futsal, destacam-se em geral as questões pedagógicas e em particular as metodológicas (como ensinar). Voser e Giusti (2002, p. 13) ratificam essa assertiva ao explicarem que "[...] o fenômeno esportivo infantil tem sido neste início de século, motivo de muitos estudos e questionamentos tanto no que diz respeito aos seus ideários como em relação à sua função pedagógica". É nessa direção que caminha nosso estudo: optamos em investigar, dentre dois princípios metodológicos clássicos e antagônicos o analítico-sintético e o global-funcional (DIETRICH, DURRWACHTER e SCHALLER, 1984) , qual o mais freqüentemente utilizado por professores de educação física para ensinar futsal. A pergunta central que procuramos responder foi se "as crianças jogam para aprender (princípio global) ou aprendem para jogar (princípio analítico)?". Na seqüência, explicaremos ambos, iniciando por este último.


O princípio analítico-sintético

Quando falamos em métodos parciais, métodos analíticos, exercício por partes, atividades centradas na técnica, geralmente estamos considerando o princípio analítico- sintético. Reis (1994, p. 9), o define como "[...] aquele em que o professor parte dos fundamentos, como partes isoladas, e somente após o domínio de cada um dos fundamentos o jogo propriamente dito é desenvolvido".

O princípio analítico apresenta a série de exercícios como medida metodológica principal (DIETRICH, DURRWACHTER e SCHALLER, 1984). Esse modelo surgiu, primeiramente, nos esportes individuais. É, particularmente, representado pelo método parcial e assume várias definições que apontam para um mesmo ponto: as habilidades são treinadas fora do contexto de jogo para que, depois, possam ser transferidas para as situações de jogo.

De acordo com Dietrich, Durrwachter e Schaller (1984, p.17), "Os representantes desse método partem do princípio que a divisão corrente do jogo em 'técnica', 'tática' e 'treino' deve também determinar a metodologia". Esse método pode ser considerado como "exato", por sua preocupação demasiada com os detalhes de cada fundamento. Greco (1998, p.41), explica que, nesse método


O aluno conhece, em primeiro lugar, os componentes técnicos do jogo através da repetição de exercícios de cada fundamento técnico, os quais são logo acoplados a série de exercícios, cada vez mais complexos e mais difíceis; à medida que a ajuda e a facilitação diminuem, gradativamente aumenta a complexibilidade e a dificuldade das ações. À medida que o aluno passa a dominar melhor cada exercício, passa a praticar uma nova seqüência. Estes movimentos já dominados passam a ser integrado em um contexto maior, que logo permitirão o domínio dos componentes básicos da técnica inerente ao jogo esportivo, na sua situação do modelo ideal...

Em síntese, uma aula orientada pelo princípio analítico-sintético caracterizar-se-ia: (a) pelo ensino de uma habilidade (ou fundamento técnico) por etapas até a sua automatização e, por fim, a sua aplicabilidade no jogo em si (FONSECA, 1997), (b) por uma seqüência de exercícios dirigidos ao aprendizado da técnica para, no final da aula, se proceder ao jogo (GRECO, 1998) e (c) pela supressão do jogo e da brincadeira (SANTANA, 2004).

Depreende-se que, se orientada por esse princípio, a aprendizagem do jogo de futsal seria construída pela repetição de exercícios, desvinculada do contexto de jogo. Por extensão, a pedagogia, na iniciação esportiva, tenderia a empregar "(...) muito tempo na técnica e pouco no jogo (GRECO, 2001, p. 54)".


O princípio global-funcional

Ao falarmos de método global, nos referimos ao princípio metodológico global-funcional. Neste, criam-se "[...] cursos de jogos, que partem da simplificação de jogos esportivos de acordo com a idade, e através de um aumento de dificuldades na formação de jogos até o jogo final (DIETRICH, DURRWACHTER e SCHALLER, 1984, p. 13)". A série de jogos (recreativos, grandes jogos, pré-desportivos...), portanto, representa a medida metodológica principal. Esse método (global) tem se mostrado mais consistente quando comparado aos analíticos, pois atende o desejo de jogar dos alunos, conseqüentemente, estes ganham em motivação e o processo ensino-aprendizagem é facilitado (GRECO, 2001).

Na teoria global, alguns autores (REIS, 1994; GRECO, 1998; LÓPEZ, 2002), insistem na importância da figura, da forma, da configuração, da organização da experiência, que está sempre estruturada na idéia do todo indissociável. Nessa concepção, trata-se de perceber os estímulos, não como a soma das partes, mas como um conjunto organizado. O ponto de partida é a equipe, que aprende a jogar através do deixar jogar.

O método global parte da totalidade do movimento e caracteriza-se pelo aprender jogando; parte-se dos jogos pré-desportivos (jogos com algumas alterações nas suas regras) para o jogo formal; utiliza-se, inicialmente, de formas de jogo menos complexas cujas regras vão sendo introduzidas aos poucos (REIS, 1994).

Quando se trata de treinamento moderno, o método globalizado (LÓPEZ, 2002) vem sendo o mais empregado, na medida que interagem aspectos como a criatividade, a imaginação e o pensamento tático dos jogadores. Este autor define três objetivos principais desse método: (a) a constante tomada de decisões dos alunos, desenvolvendo assim sua inteligência tática, permitindo solucionar problemas que ocorrem durante a partida, (b) facilitar a compreensão por parte do jogador, da verdadeira estrutura do jogo com fases defensivas e ofensivas que requerem do jogador posturas diferenciadas e (c) permite, também, que os alunos enfrentem com mais segurança a competição, já que enfrentam a mesma situação em treinamentos.

Greco (1998, p.43) explica que, nesse método, "[...] procura-se em cada jogo ou formas jogadas, pelo menos a 'idéia central do jogo' ou que suas estruturas básicas estejam presentes na metodologia". Note-se que a divisão dos jogos não deve abranger muitas partes, de forma que o aluno consiga alcançar logo o jogo objetivado. Deve-se ter cuidado, também, para que as formas de jogo prévias não sejam mais difíceis que o jogo objetivado (o jogo formal).

Para os que são conservadores em relação ao método global, apoiando-se na idéia de que é preciso adquirir a técnica das diferentes habilidades para depois jogar (crença do princípio analítico), é preciso atentar para o fato de que os alunos não vêm em branco para as aulas. Eles já possuem um repertório rudimentar de habilidades, o que lhes permite jogar e atualizar neste (no jogo) o seu repertório motor (GRAÇA, 1998). Destaca-se, nesse princípio, o fato de que os alunos, ao jogar, são obrigados a tomar decisões. Para tomá-las, deverão considerar fatores, como, por exemplo, o adversário, a sua colocação, a colocação do adversário, o posicionamento dos seus companheiros e o que fazer com e sem posse de bola, ou seja, quem joga interage com os imprevistos que somente o jogo propicia. A possível decorrência disso é tornar-se mais inteligente para jogar. Por conseguinte, as habilidades são desenvolvidas num contexto de jogo de forma aberta (vivenciadas num contexto de imprevisibilidade), projetando uma herança de movimentos e de leitura tática promissora para quem aprende.

Como explicitado, os princípios e métodos de ensino são opostos e têm objetivos distintos. O analítico é centrado na técnica, em exercícios, na repetição dos gestos esportivos e na especialização precoce do aluno em cima de algumas técnicas. O global é centrado na tática, no jogo, cujo ambiente torna-se mais prazeroso, a especialização precoce de algumas habilidades é refutada e o objetivo é desenvolver a inteligência do aprendiz.


Material e método

O método de pesquisa foi observação não-participante. Nesta, o pesquisador toma contato com a comunidade, mas sem integrar-se a ela: permanece de fora, isto é, "[...] presencia o fato, mas não participa dele; não se deixa envolver pelas situações; faz mais o papel de espectador (MARCONI; LAKATOS, 2003, p.193)".

Na investigação, observaram-se oito aulas de futsal para crianças de sete e oito anos, ministradas por professores de educação física, em quatro escolas especializadas da cidade de Santa Maria (RS). O que se procurou observar foi qual dos dois princípios anteriormente descritos é mais freqüentemente utilizado para se ensinar futsal. Para tanto, foram estabelecidos alguns critérios: (a) se, nas aulas, o professor apresentasse a série de exercícios como medida metodológica principal e, por último, o jogo formal (o jogo de futsal em si), considerar-se-ia o princípio analítico-sintético; (b) se o professor apresentasse a série de jogos como medida metodológica principal e, depois, mas não necessariamente, o jogo formal, o princípio global-funcional seria considerado. O pesquisador, à medida que os professores propuseram as atividades, as anotou em formulário específico.


Resultados e discussão

A tabela seguinte contempla o número da aula observada, a incidência (a quantidade) de atividades motoras ministradas e o princípio metodológico.

Tabela 01: Princípio metodológico utilizado nas aulas observadas


Com base nos dados anteriores, evidenciou-se a unanimidade do princípio analítico-sintético presente nas oito aulas das diferentes escolas para se ensinar futsal. As atividades foram baseadas em exercícios, realizados em partes, em etapas, apresentando uma divisão dos gestos, das técnicas, da ação motora em seus mínimos componentes (GRECO, 1998).

Em geral, as aulas contemplaram exercícios de passe, de condução e de chute, realizados de forma individual, em duplas ou em trios. Seguiu-se à série de exercícios, em todas as aulas, o jogo formal, isto é, o jogo de futsal com a formação numérica de 5x5. Num total de 31 atividades propostas pelos professores, 24 delas eram, predominantemente, analíticas, representando 77,19% e a outra parte, menor, referiu-se à aplicação do jogo formal, representado 25,8%. Infere-se que os professores enfatizaram o modelo de ensino centrado na técnica o que, segundo Greco (1998, p. 41), está "[...] orientado ao gesto do campeão".

Relevante que todas as escolas pesquisadas, ainda que pertençam, geograficamente, a locais diferentes, adotaram o mesmo princípio metodológico. O que se perde e o que se ganha com esse tipo de pedagogia? Perde-se cognitivamente, isto é, o aluno é treinado para repetir exercícios e não para resolver problemas; para seguir um modelo e não para criar e se adaptar a novas situações; para executar a habilidade (como fazer), mas não para aplicá-la em situação de jogo, associada ao o que fazer, quando fazer e por que fazer. A possível herança para os alunos, além das anteriormente mencionadas (incapacidade para resolver problemas, dificuldade para criar e se adaptar a novas situações) é a de adquirirem uma boa execução das diferentes técnicas do futsal.


Considerações finais

Ao nosso ver, o que se encontrou nas escolas de futsal pesquisadas foi um tipo de pedagogia que não capacita a criança a resolver os problemas que se apresentam no jogo. A criança que aprende a praticar as habilidades, possivelmente, ficará competente nisso, mas isso não é garantia de que ela possa jogar bem futsal. A idéia analítica de que a soma das partes resultará no todo, isto é, de que se o aluno aprender a passar, a chutar, a conduzir se lhe garantirá jogar bem é, no mínimo, duvidosa. Por quê? Porque o jogo de futsal e os esportes coletivos em geral são muito mais que isso. Jogar futsal exige perceber, antecipar ações (no plano mental) e tomar decisões (GARGANTA, 1998). Escolher corretamente o que fazer dependerá, portanto, de saber escolher e isso demanda uma pedagogia do treino comprometida em propiciar situações nas quais isso seja exigido. Ora, um processo de ensino centrado na repetição de exercícios inibe conflitos e problemas, logo inibe a criatividade e a tomada de decisões.

Em sendo assim, pensamos que o raciocínio do treino (ou da aula) de futsal deve perseguir o viés do jogo. O aluno, no treino, deve confrontar-se com as vicissitudes do jogo (SANTANA, 2002b). Mas, por que jogar? Pelo menos por seis motivos:


O jogo atende o desejo de jogar da criança;


O jogo motiva a criança a aprender;


O jogo desenvolve a inteligência tática;


O jogo favorece as trocas sociais;


O jogo facilita o desenvolvimento moral;


O jogo não exclui a técnica.

Por um lado, não pode passar despercebido do que se observou, o fato de que é precoce ensinar um único tipo de esporte para crianças de sete e oito anos, ainda que, culturalmente, se justifique ensinar futsal no Brasil. Seguramente, crianças nessa faixa etária (considerando-se, evidentemente, as experiências individuais) em geral não se encontram no melhor período para aprender habilidades motoras específicas (MEINEL, 1984), tampouco para aplicá-las num contexto definido (GALLAHUE, 1996) e, muito menos, para se especializar esportivamente (BOMPA, 2002). Logo, a pedagogia observada, em particular por centrar-se na repetição de técnicas, compromete tanto a inteligência tática como o repertório motor das crianças. Estes são, ao nosso ver, os seus maiores equívocos.

Compreendemos que os professores de esporte em geral devem ter conhecimento dos princípios metodológicos a serem aplicados na iniciação esportiva, pois estes têm uma relação estreita com o aprendizado do aluno, com a seleção das atividades motoras a serem propostas, com as diretrizes pedagógicas, com a idéia que se tem da formação do jogador. Como escolher um princípio, perpassa conhecê-lo, procuramos neste artigo, por um lado, clarificar os aportes teóricos de dois princípios antagônicos e, de outro, conhecer, num contexto em particular, a utilização dos mesmos em aulas de futsal para iniciantes.

Esperamos que outros estudos sejam realizados no Brasil a fim de que se possa conhecer, em outros cenários e faixas etárias, como os professores ensinam futsal, um dos esportes mais praticados e queridos pelas crianças brasileiras.


Referências


BOMPA T.O. Treinamento Total para Jovens Campeões. São Paulo: Manole, 2002.


DIETRICH, K, DÜRRWÄCHTER, G, SCHALLER, H. Os grandes jogos: metodologia e prática. Rio de Janeiro, Ao Livro Técnico, 1984.


FONSECA, G.M. Futsal: metodologia do ensino. Caxias do Sul: EDUCS, 1997.


FREIRE, J.B. Pedagogia do futebol. Campinas, Autores Associados, 2003.


GALLAHUE D. L. Developmental Physical Education for Today's Children. Dubuque: Brown&Benchmark, 1996.


GARGANTA J. Para uma teoria dos jogos desportivos coletivos.In: GRAÇA A, OLIVEIRA, J. O ensino dos jogos desportivos. 3a ed. Santa Maria da Feira: FCDEF-UP, 1998. p.11-25.


GRAÇA, A. Os comos e os quandos no ensino dos jogos desportivos coletivos. In: GRAÇA A, OLIVEIRA, J. O ensino dos jogos desportivos. 3a ed. Santa Maria da Feira: FCDEF-UP, 1998, p.27-34.


GRECO, P.J. Iniciação esportiva universal 2: metodologia da iniciação esportiva na escola e no clube. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.


GRECO, P.J. Métodos de ensino-aprendizagem-treinamento nos jogos esportivos coletivos. In: GARCIA, E.S; LEMOS, K.L.M. Temas atuais VI - Educação física e esportes. Belo Horizonte: Health, 2001. cap.3, p. 48-72


LÓPEZ, J.L. Fútbol: 1380 juegos globales para el entrenamiento de la técnica. Sevilla: Wanceulen, 2002.


MARCONI M.A, LAKATOS E.M. Fundamentos de metodologia científica. 5a ed. São Paulo: Atlas, 2003.


MEINEL K. Motricidade II - O desenvolvimento motor do ser humano. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1984.


REIS, Heloisa Helena Baldy dos. O ensino dos jogos esportivizados na escola. 1994. Dissertação (Mestrado em Educação Física) UFSM, Santa Maria.


SANTANA, W.C. Heresia. 2004. Seção Editorial. Disponível em http://www.pedagogiadofutsal.com.br/editorial_006.php Acesso em 04 jul. 2004.


SANTANA, W.C. Futsal ou futebol de salão? Uma breve resenha histórica. 2002a. Seção Apontamentos. Disponível em < http://www.pedagogiadofutsal.com.br/texto_015.php Acesso em 04 jul. 2004.


SANTANA, W.C. Jogo livre: a herança do jogador de futsal bem treinado. 2002b. Seção Apontamentos. Disponível em http://www.pedagogiadofutsal.com.br/texto_019.php Acesso em 04 jul. 2004.


VOSER, R.C, GIUSTI, J.G. O futsal e a escola: uma perspectiva pedagógica. Porto Alegre: Artmed, 2002.

Fonte

Publicado em 17/03/14 e revisado em 04/11/19



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Iniciação ao futsal: as crianças jogam para aprender ou aprendem para jogar? Iniciação ao futsal: as crianças jogam para aprender ou aprendem para jogar? Editado por Dani Souto Esporte Educacional on 06:31 Nota do Post: 5

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